Por que precisamos falar sobre equidade racial?

A Aldeia já nasceu diversa – antes do termo diversidade ganhar escala. Pra nós, desde sempre, competência e potência das pessoas são definidas pela sua capacidade de aprender, pensar e realizar – independente de etnia, identidade ou expressão de gênero, orientação sexual, religião, idade ou relação com o corpo. Nossa gestão é liderada por mulheres e nosso time é feito por pessoas com repertórios de vida e características ímpares. 

Acreditamos que, em comunicação, o pensamento diverso é necessário para levar ao mundo das marcas e empresas o retrato da atualidade como maneira legítima de conexão com o público. Mas não a realidade de uma bolha ou de um recorte parcial do mundo, a realidade como de fato ela é. Sem filtros. Sem lentes. Afinal, na hora do consumo, o dinheiro não tem cor, sexo ou idade, não é mesmo?

Nós vivemos no Brasil, um país em que 56% das pessoas se declara negra ou parda (PNAD – IBGE, 2019). É da pluralidade que os negócios são feitos e é dela que nasce a saudável abrasão criativa, com percepções de mundo que se desafiam e também se complementam. O caldo desse tipo de pensamento é mais rico, denso e nutritivo. O pensamento aberto é importante para fomentar a representatividade, a diversidade e a inclusão na comunicação e principalmente de dentro para fora nas organizações. Felizmente, nos últimos anos, acompanhamos uma quantidade crescente de empresas que desenvolvem programas internos que vão bem mais a fundo do que a camada do marketing, envolvendo lideranças e todos os níveis de atuação em suas políticas, de recursos humanos ao desenvolvimento de produtos. Muitas organizações tem acertado e errado nessas temáticas, mas estão aprendendo – isso importa muito: o interesse e a intenção de levar a sério temas que pedem profundidade e continuidade. Sim, temos um longo caminho a trilhar.

É por isso que sabemos que não basta refletir sobre racismo na semana da Consciência Negra. Hoje estamos abrindo um pouco mais essa conversa, que é sempre presente na Aldeia: convidamos um mestre em história para nos lembrar da importância do antirracismo. Boa leitura.

Leandro Leão
Publicitário pela Unisinos, fotógrafo e sócio na Aldeia desde 2009.

Consciência Negra e a luta antirracista

Peço desculpas aos meus irmãos de pele preta e parda, descendentes daqueles que sentiram na pele suada, a força da chibata, sob o sol forte no corte da cana, essas linhas que seguem não são para celebrar a Semana da Consciência Negra, mas para propor uma reflexão sobre privilégios e consciência histórica.

Há mais de quatrocentos anos pessoas foram sequestradas de suas casas e retiradas de suas terras ancestrais em África, separadas de suas famílias, vendidas como objetos e transportadas para lugares distantes em navios tumbeiros, na busca do lucro do colonizador branco europeu. Nas viagens pelo Atlântico, que demoravam semanas nos porões destes navios negreiros, homens, mulheres e crianças eram acorrentados, em meio aos seus dejetos, alimentando-se apenas quando os seus captores brancos assim permitiam.

Muitos desses homens, mulheres e crianças, ao serem considerados doentes eram jogados ao mar acorrentados uns aos outros. Foram tantos corpos jogados ao mar nessa travessia pelo Atlântico, que os próprios tubarões mudaram sua rota alimentar para seguir os navios tumbeiros em busca da carne negra jogada ao mar ainda viva.

Homens, mulheres e crianças ao chegarem no continente americano eram vendidos não por unidade, mas por arrobas como o gado, assim como lembrou um certo político ao se referir ao peso de um quilombola nos dias atuais, em uma frase tipicamente racista de quem nega a História.

Estes corpos negros eram negociados em uma lógica de mercado, que estipulava o valor do ser humano por sua força e resistência a longas jornadas de trabalho, no roçado ou pela beleza exótica feminina do corpo negro, que servia para satisfazer o senhor branco.

Apesar de tudo, eles resistiram das mais diversas formas possíveis. Fugiam para quilombos, adaptaram sua religião produzindo um sincretismo típico e legitimamente brasileiro, produzindo cultura através da dança, música, da capoeira. Eles resistiram, nós resistimos.

Ao pensar que o processo de escravização negra no Brasil foi um dos mais longos do mundo, terminando apenas em 1888, ao pensar nos impactos sociais, culturais e econômicos que a dominação do colonizador branco europeu produziu no povo negro, torna-se cada vez mais necessário compreender a importância da Consciência Negra.

 Esta consciência que não deve ser uma reflexão apenas de homens e mulheres pretos e pardos, mas principalmente das pessoas brancas, que devem pensar sobre os privilégios que a herança nefasta da escravização negra produziu para si e para o seu grupo racial. Como afirma o rapper americano Talib Kweli “Nenhuma pessoa branca que vive hoje é responsável pela escravidão. Mas todos os brancos vivos hoje colhem os benefícios dela, assim como todos os negros que vivem hoje têm as cicatrizes dela.”

A Consciência Negra não pode ser apenas uma semana de reflexão sobre a nossa resistência como povo ao cativeiro, mas passa  diretamente pela ideia da igualdade racial autêntica, consolidada não só no lugar de fala dos negros que foram subalternizados por gerações, mas pelo espaço que deve ser garantido pelos brancos em um movimento legitimamente antirracista.

Devemos, homens, mulheres e crianças negras resistirmos sim ao racismo sistêmico, estrutural e real. Mas cabe aos brancos, ricos e pobres, homens e mulheres, repensarem seus privilégios de forma crítica, para juntos, negros e brancos, buscarmos uma equidade racial real e concreta. Como afirma Ângela Davis “não basta não ser racista, mas ser antirracista”. O antirracismo, no entanto, só pode existir quando acompanhado de auto reflexão, em busca da verdadeira consciência universal e do verdadeiro sentido de ser humano.  

Desejo a todos, então, uma grande semana de reflexão, na busca cada vez maior de uma sociedade verdadeiramente antirracista!

Cleber Teixeira Leão
Mestre em Ensino de História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor-pesquisador de História da Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul. Contato: cleber.leao@gmail.com

REFERÊNCIAS
CARDOSO, Lourenço. A branquitude acrítica revisitada e as “críticas”. In: MULLER, Tania M. P.; CARDOSO, Lourenço (org.). Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil. Curitiba: Appris, 2017.
DAVIS, Ângela. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2017.
DAVIS, Ângela.  A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018.
DAVIS, Ângela.  Uma autobiografia. São Paulo: Boitempo, 2019.
RIBEIRO, Domitila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido o branco e o branquíssimo: branquitude hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014.

A Aldeia já vem abordando, ao longo dos anos, a importância do assunto aqui no Blog. Clique aqui e confira como pensar a diversidade num ambiente homogêneo.